
Marcelo Barbosa, investigador do grupo IFIMUP-IN da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, ganhou no final do ano passado um prémio atribuído ao melhor poster com trabalho de investigação realizado e apresentado por um jovem investigador na conferência comemorativa dos 50 anos do laboratório de feixes de iões radioactivos ISOLDE-CERN em Genebra, Suíça.
1) Podes contar-nos um pouco da tua história recente. Estás actualmente a realizar o doutoramento, qual é o teu tema?
O meu doutoramento é focado no estudo da estrutura electrónica, estabilidade e posição de átomos dopantes em nano-estruturas e filmes finos de semicondutores de grande largura de banda, como por exemplo Ga2O3, ZnO, GaN e AlN. Para este estudo utilizamos técnicas hiperfinas com núcleos sonda radioactivos.
Estes são materiais de grande interesse a nível tecnológico, nomeadamente para aplicações em nano- e microelectrónica, nano-fotónica e nano-sensores.
2) Em que materiais as técnicas hiperfinas são mais úteis e que informação é possível retirar sobre os materiais estudados por esta técnica?
Técnicas hiperfinas são todos os dias utilizadas nos hospitais quando se faz, por exemplo, um exame de ressonância magnética nuclear. A informação que se obtém é muito local, à escala do átomo sonda que vê o que se passa na sua vizinhança imediata. Nós utilizamos átomos radiaoctivos para ter acesso a sondas de muitos elementos diferentes, com propriedades diferentes e assim colectar uma informação mais completa do comportamento de certos elementos nos materiais.
Nas nossas medidas experimentais, é introduzida uma pequeníssima quantidade de átomos de um elemento radioactivo no material em estudo, os quais vão funcionar como sondas “hiperfinas”. A radiação que esses átomos libertam durante o seu decaimento permite-nos obter informação sobre o ambiente em seu redor à escala dos nanómetros, ou seja, permite-nos estudar propriedades do material onde se encontram a uma escala mais pequena do que qualquer microscópio permitiria. Desta forma, podemos por exemplo localizar impurezas e defeitos ao nível atómico, observar mudanças de fase nos materiais, controlar o crescimento de nano-estruturas, ou até mesmo fazer medidas in-vivo, como no estudo das propriedades bioquímicas de proteínas.
São técnicas com uma aplicabilidade bastante abrangente, tendo já sido utilizadas por exemplo no estudo de materiais semicondutores, magnéticos, multiferróicos, em grafeno, nanopartículas e em compostos biológicos como proteínas e DNA.
3) Em que medida o teu trabalho contribuiu para o desenvolvimento da técnica hiperfina?
A técnica hiperfina com a qual tenho estado a trabalhar baseia-se na medição da distribuição de carga eléctrica à volta das sondas (átomos) radioactivas que são inseridas nos materiais em estudo. É através da distribuição de carga que conseguimos por exemplo dizer qual a posição atómica das sondas, quem são os átomos vizinhos, quais as impurezas ou defeitos existentes, etc. Nestas circunstâncias, a distribuição de carga é constante ao longo da medida.
O meu trabalho tem sido o desenvolvimento de ferramentas que permitem o uso desta técnica em situações em que a distribuição de carga varia ao longo da medida, permitindo-nos, por exemplo, observar a recuperação electrónica depois de “arrancarmos” um electrão à nossa sonda. Essa recuperação é feita por electrões cedidos pelo material onde se encontra a sonda, ou seja, este tipo de medidas dá-nos informação sobre a facilidade com que os electrões se movem ou não no material, onde eles se vão fixar, mesmo que temporariamente, e qual a sua concentração.
4) Especificamente, podes desenvolver um pouco sobre o trabalho que apresentaste no CERN?
No trabalho que apresentei no CERN foi usada uma técnica hiperfina em amostras de Ga2O3 após implantação de iões radioactivos de cádmio e índio, com o objectivo de se determinar a localização de sondas de cádmio e as propriedades electrónicas à volta desses átomos de cádmio nesse material.
Ga2O3 pertence aos denominados óxidos condutores transparentes e é um material bastante promissor para aplicações em fotónica. No entanto, a dopagem do tipo-p (excesso de cargas positivas) necessária para a utilização deste material a nível tecnológico ainda não foi conseguida, sendo que o cádmio é um dos candidatos mais promissores para este tipo de dopagem.
5) Parte do teu trabalho experimental é realizado no ISOLDE, no CERN. O que achas que melhor distingue este centro de excelência? Em que medida julgas que contribuiu para a tua educação científica?
O ISOLDE-CERN é reconhecido como o laboratório líder a nível mundial na produção de isótopos radioactivos exóticos. Neste momento, o ISOLDE produz mais de 1000 isótopos e isómeros de 75 elementos químicos, os quais podem ser usados sob a forma de feixe de iões altamente puros. Tendo em conta que o uso de técnicas hiperfinas depende do acesso a isótopos radioactivos, é imediato perceber a enorme vantagem que é poder usufruir de uma infraestrutura como o ISOLDE. Para além disso, o ISOLDE faz parte do CERN, uma das melhores instituições de investigação científica a nível mundial, onde trabalham alguns dos melhores cientistas da actualidade. Poder trabalhar numa instituição desta dimensão e importância é uma oportunidade única pois tem-se acesso a condições laboratoriais únicas, associado ao facto de se trabalhar em colaboração com os maiores especialistas na minha área de investigação. O conhecimento e experiência que tenho vindo a adquirir no CERN em termos de física nuclear e física dos materiais dificilmente conseguiria em algum outro lugar.
6) Grande parte do trabalho realizado no CERN pode ser considerado de Física fundamental, como a descoberta do bosão de Higgs há dois anos. Como classificas a importância deste tipo de estudo e como achas que se enquadra no contexto actual?
A descoberta do bosão de Higgs foi um dos momentos mais marcantes dos últimos anos para a comunidade científica, mas para as pessoas fora da ciência nem sempre é fácil compreenderem os elevados gastos que experiências deste calibre têm quando não parecem ter aplicações práticas no dia-a-dia, mas todo o desenvolvimento tecnológico necessário para as realizar tem grande impacto a um nível mais geral. A World Wide Web e o HTML, as duas bases daquilo que para nós é a internet hoje em dia, foram desenvolvidas no CERN para facilitar a partilha de resultados experimentais entre cientistas. Um dos primeiros touchscreens a ser construído (e provavelmente o primeiro a ser usado em termos práticos) também foi criado no CERN, para a sala de controlo de um dos aceleradores de partículas. Foram tudo invenções com objectivos científicos e que hoje são usados por quase toda a gente.
7) Neste contexto, como posicionas a importância da tua própria investigação.
A minha investigação é feita num ramo mais aplicado da Física aos materiais. Usamos técnicas únicas – que produzem informação – a um nível muito científico e fundamental, ou seja, apesar dos meus resultados poderem vir a ser importantes em aplicações tecnológicas futuras, o meu interesse é na explicação física dos fenómenos que observamos e não em como os podemos usar em termos práticos. Todavia – quase todos os materiais que estudamos se tornaram interessantes por terem potenciais aplicações e problemas por resolver e compreender – é essa a nossa tarefa!
8) Voltando ao contexto nacional, como caracterizas o estado da ciência nacional e em que medida achas que o CERN contribuiu para a ciência nacional.
Toda a gente está a sentir a crise que se vive neste momento no nosso país, e a comunidade científica não é excepção. Têm sido feitos cortes enormes no apoio às universidades e institutos de investigação, já para não falar na dificuldade cada vez maior em se conseguirem bolsas de doutoramento ou posições como investigador. Hoje em dia é quase ilusório pensar-se em fazer uma carreira científica em Portugal tal é a dificuldade em se obterem bolsas de doutoramento e pós-doutoramento ou, pior ainda, conseguir-se um contrato como investigador. Além disso, quem consegue essas bolsas ou contratos tem os orçamentos muito apertados, o que complica a realização de experiências de qualquer tipo. Mesmo assim continua-se a fazer ciência de topo no nosso país, temos cientistas muito bons cá. No CERN existem imensos portugueses a trabalhar, mas existem ainda mais que como eu vão lá fazer experiências por curtos períodos de tempo e voltam, trabalhando em nome de institutos portugueses, por isso eu diria que o CERN tem sido um bom impulsionador da ciência nacional.
9) E no futuro, o que gostarias de fazer depois de terminado o doutoramento?
Eu gostaria de continuar a fazer carreira como investigador, por isso depois de terminado o doutoramento tudo aponta para que concorra a um pós-doutoramento, que é o caminho mais natural para quem quer continuar a fazer investigação.
foto: DR