Entrevista – Do Barreiro para a maior favela do mundo

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Aos 26 anos, Marta Baeta é  uma miúda sonhadora que quer tornar o Mundo num lugar melhor. Vive entre o Barreiro e a Kibera, uma favela do Quénia. É viciada em sol e em praia, em viagens e em sair com os amigos. Adora comer e dançar. Agora até já gosta da sensação de ser emigrante. 
Esteve 3 anos na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa a estudar Química mas no 3º ano desistiu, não era aquilo que queria fazer e mudou para a Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa para estudar Relações Públicas e Comunicação Empresarial, foi ai que se licenciou, depois de 3 anos como Vice-Presidente da Associação de Estudantes da ESCS, de vários estágios e de mil actividades extra-curriculares.

Já foram garantidos 160 anos escolares e 60 mil refeições.

P: Como chegaste até ao voluntariado?

Fiz sempre voluntariado. Em criança fui escuteira. A minha avó foi toda a vida voluntária na Cruz Vermelha Portuguesa e eu acompanhei-a sempre. Na escola participei sempre na confecção dos cabazes de Natal para as famílias mais necessitadas e ainda hoje quando estou em Portugal no Natal (o que é raro) tento sempre passar essa noite com crianças de instituições. Os meus pais sempre me educaram a ajudar o próximo e desde pequena que sempre participámos em várias campanhas de angariação de fundos e de bens materiais e sempre que via alguém na rua a passar dificuldades acabava por levar um cobertor, alguma comida e o que fosse necessário.Fiz voluntariado com animais abandonados, com sem abrigo, com crianças com deficiência, dei explicações em bairros problemáticos de Lisboa e fiz várias formações de voluntariado internacional.Sempre recolhi em minha casa animais de rua e no Brasil quando fiz intercâmbio universitário fui família de acolhimento temporária de 8 cães. Digamos que o voluntariado foi sempre uma constante na minha vida.

P: Através de que instituições praticaste voluntariado?

Através da Associação dos Amigos dos Animais Abandonados da Moita, da Comunidade Vida e Paz, do Banco Voluntariado de Lisboa, da CASA – Centro de Apoio ao Sem abrigo, na Casa de Saúde Mental do Telhar, do GASNova.

P: Quantas experiências tiveste e e que países

Três. Em Portugal, Brasil e Quénia.

P: O que sentiste ao chegar ao primeiro local de missão?

Que não era real e que era impossível (sobre)viver-se ali, naquelas condições. O cheiro era nauseabundo, havia lixo e lama por todo o lado. Muitas pessoas a andar rápido e de um lado para o outro. Ruelas e mais ruelas, as casas pareciam todas iguais e o caminho para chegar à escola era enorme. Sentia muito medo ao início, as coisas em Kibera há uns anos atrás também eram mais perigosas. E eu era uma miúda quando fui a primeira vez para lá. Havia muitas crianças e animais também pelas ruas, no meio do lixo a vasculharem, à procura de comida e de brinquedos e de coisas com que se entreterem. Havia música por todo o lado e com o passar do tempo entendi que aquela gente apesar de não ter nada e de viver no pior lugar do mundo era feliz. Hoje em dia já nada me faz grande confusão, já acho tudo normal e acho que Kibera é um bom local para se viver.

P: O que mudou em ti depois do voluntariado?

Fiquei muito mais madura, ao longo destes anos sinto que cresci imenso. Fiquei muito mais tolerante e com uma maior capacidade para aceitar tudo. Também há coisas más…eu nunca fui muito pontual, agora ainda sou menos. Quando se marca algum encontro / reunião no Quénia tens sempre de referir que não é Quenian Time, porque se não a coisa pode atrasar-se várias horas. E eu herdei isso deles, fiquei ainda pior. Agora poucas coisas do nosso mundo me deixam mesmo preocupada e me afligem.

P: Como nasceu o From Kibera with love?

Depois da minha experiência enquanto voluntária, quando regressei a Portugal entendi que as pessoas que já tinham ajudado as crianças queriam continuar a ajudá-las e estavam realmente empenhadas e decididas a mudar as suas vidas. Entretanto foram aparecendo cada vez mais pessoas interessadas em ajudar e em contribuir para o que eu estava a criar e a começar. As pessoas perguntavam quando iria voltar ao Quénia, sendo que nessa altura isso era algo que ainda não passava pela minha cabeça. Achava que não iria voltar tão cedo. As pessoas questionavam sobre a educação dos miúdos no ano seguinte e como seria se eles ficassem doentes etc. Ao mesmo tempo a ajuda que foi chegando era cada vez maior e eu comecei a perceber que podia fazer algo mais e podia realmente continuar o que tinha começado sem me aperceber. A partir daí foi uma bola de neve, foi chegando cada vez mais ajuda, cada vez mais pessoas ficavam a conhecer o projecto e era cada vez mais fácil fazer mais coisas por estas crianças e de forma a tornar a vida delas melhor.

P: O que já foi feito e o que falta fazer?

Já foram garantidos 160 anos escolares e 60 mil refeições. Mas o mais importante é a mudança na vida destas crianças. Quando as conheci elas estudavam em escolas sem qualquer condição, sem material escolar, sem uma refeição por dia. Agora algumas delas estão numa das melhores escolas de Nairobi com resultados excelentes.Estas crianças neste momento estudam em escolas onde o ensino é oficial, onde os professores são muito exigentes, onde se aprende e se fala em inglês. Onde têm acesso a água potável e filtrada, onde fazem uma alimentação rica e variada. Têm actividades extra curriculares (ballet, natação, aulas de computador, grupo de dança e equipa de futebol). Já tiveram experiências e dias maravilhosos (piscina, parque infantil, insufláveis, pinturas faciais, cinema). Finalmente sabem o que é uma festa de anos, até agora nunca ninguém tinha celebrado o seu aniversário. Fiz obras e coloquei luz natural na escola onde comecei por ser voluntária, deixou de chover dentro da escola e as condições de esgoto foram melhoradas.

Estão 4 jovens no ensino secundário e pelo menos 2 deles irão para a universidade. Melhoramentos nas casas das famílias apoiadas pelo projecto através da aquisição de camas, mesas, fogão a carvão, caixas de lata onde guardam os pertences, colchões, redes mosquiteiras. Apoio médico gratuito , desde consulta a medicação a exames e a curativos.  Criados 5 postos de trabalho e melhoria de 3 outros negócios dos pais.

Falta sempre muito, falta melhorar as condições em que estas famílias vivem, falta proporcionar mais experiências únicas a estas crianças para que elas tenham noção do mundo que existe à parte de kibera para que queiram fazer parte dele um dia mais tarde. Falta trabalhar mais no planeamento familiar.

P: Que apoios tens?

Só apoios de pessoas em particular, de grupos de amigos que se juntam e de grupos de colegas de trabalho que decidem enquanto ‘empresa’ ajudar. Não há financiamentos nem patrocínios. Mas os portugueses realmente são extraordinários e extremamente solidários. Só assim foi possível chegar onde cheguei.

Há algumas escolas que se associaram ao projecto e que são parceiros fantásticos, o Colégio Minerva por exemplo realiza ao longo do ano diversas actividades de angariação de fundos e tenta que realmente toda a comunidade escolar se envolva com o projecto.

P: Como é que os interessados podem apoiar o projecto?

Podem visitar o nosso facebook e ficar a conhecer um pouco mais da história destas crianças e das suas famílias. Podem dar a conhecer o projecto a mais pessoas. Podem apadrinhar uma criança garantindo assim a continuação do acesso à educação da mesma. Podem realizar um actividade de angariação de fundos para o projecto (concerto, caminhada, festa, espectáculo, aula de zumba, de yoga). Podem efectuar um donativo pontual ou como resposta aos apelos que vou fazendo no facebook. Podem adquirir o artesanato que temos para venda no facebook e que vamos vendendo em feiras e mercados, todo feito pelos pais das crianças e por membros da comunidade de Kibera.

 
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P: Vieste a Portugal para promover o projecto. Que feedback e apoios obtiveste?

Sempre que venho a Portugal tento dar a conhecer o From Kibera With Love a mais pessoas e angariar mais fundos. Só assim é possível dar continuidade ao trabalho já feito. Desta vez está a correr realmente muito bem, estou a conseguir chegar a cada vez mais pessoas, temos já 2 núcleos de voluntários a funcionarem de forma independente, para além do que já existe no Barreiro / Lisboa, agora temos no Porto e nos Açores, no Pico. Durante estas 2 semanas que já passaram realizaram-se dezenas de actividades de angariação de fundos e de divulgação do projecto , todas elas com enorme sucesso e adesão. Os objectivos semanais a que me propus têm sido todos atingidos e estou a conseguir criar novas parcerias, com escolas, marcas já existentes e a angariar novos doadores e padrinhos.

P: Do que mais sentes falta no Quénia?

Da minha família, dos meus amigos e dos meus animais, como é óbvio.Da boa comida portuguesa, das nossas praias, da liberdade de andar sozinha na rua sem que ninguém me aborde e sem estar sempre alerta para os perigos. De vestir o que quero sem que me incomodem na rua, de sair à noite de casa sem pensar será que vai correr tudo bem.Do conforto do meu lar, de puder abrir uma torneira e beber água, de ter uma casa de banho normal, de tomar banho sem ser num alguidar com um jarro de água. Sinto falta da civilização, dos bons modos e bons hábitos que nós temos. Das ruas limpas, dos meios de transporte que funcionam, de me sentar numa esplanada ao sol.

P: Estão outros portugueses lá como a Diana Vasconcelos, como se relacionam?

Só recentemente comecei a relacionar-me com os portugueses que também vivem em Nairobi ou que visitam frequentemente Nairobi em trabalho, são para além de bons amigos, um escape para os problemas e para o stress que vivo em Kibera. Há um grande espírito de entre ajuda entre os portugueses e eles de alguma forma protegem-me e têm um carinho especial por mim, por ser a mais nova do grupo, pelo que faço, pelas condições em que vivo e pela vida que escolhi para mim no Quénia.  Recebi a Diana muito bem quando ela chegou a Nairobi, posso dizer que fui uma boa anfitriã, dei-lhe todas as dicas que pude e todos os conselhos. Entretanto cada uma tem a sua vida. Vejo-a muito pouco mas quando nos vemos é uma festa.

P: O que te faz voltar ao Quénia? As crianças?

São as crianças sem dúvida, desde o primeiro dia que tudo o que faço e tudo aquilo a que me sujeito é por elas. E se optei por dedicar todo o meu tempo e energia a estas crianças é porque elas são simplesmente maravilhosas e não têm culpa do lugar em que nasceram.Mesmo quando fui ameaçada de morte e regressei ao Quénia uns meses depois, apesar de ir cheia de medo e com o coração apertado, havia algo que me movia e que não me permitia desistir, eram elas, eram os sorrisos delas e a força delas para continuarem a sobreviver neste mundo.

P: Tens outros projectos em mente ?

Sim mas por enquanto são segredo!  Mas passam por continuar em Kibera e também prestar ajuda em outros países, nomeadamente em Portugal.

fotos: DR